Diário de viagem

Já aqui me tinha referido à obra de Manuel Teixeira Gomes, embora de forma elíptica. Retorno a ela, como quem retorna a um filão de um metal mais magnífico do que o ouro, que se pensava esgotado, olvidado, ostracizado até.

Pecado maior na aceitação e compreensão de qualquer artista é a incapacidade de o dissociar da sua vida pessoal. Amiúde, as suas vidas estão longe do ideal que tentaram alcançar através da criação artística. Tudo farei para que nunca tenha que absolver tal mácula de julgamento.

Transcrevo aqui um excerto que julgo exemplar da forma gloriosamente barroca como utilizou a sua língua natal. Latifundiário de uma linguagem riquissimamente ornada, emprestando-se frequentemente a veleidades de esteta linguístico, possuía dotes descritivos como muito poucos. Confiram, então.


«Parte do jardim tornara-se impenetrável pela densíssima vegetação que o enchia, mas via-se, de longe, desse miolo de verdura, alar a fluência magnífica das bananeiras estéreis, os leques malabares das palmas anãs, as vergastas dos bambus e, ardendo como fachos acesos, os tirsos alaranjados dos cactos floridos... Do lado oposto e ao abrigo do biombo de loureiros entretecidos de heliotrópios, cujas flores, na sombra lúcida, lhes recamavam a folhagem envernizada de gotas azuladas, o tanque de águas verdosas, turquesa oval, reflectia por entre rolos de limos trechos de céu profundo. Era ali que durante os crepúsculos se destilavam os perfumes mais activos.

O jardim vivia o momento supremo do seu esplendor, hora imperial, fulgurante, perdulária, que se encurtava para se não repetir mais, exausta em voluptuosidades arrebatadas e caprichosas; e essa hora divina foi para mim só...»

Manuel Teixeira Gomes, in Cartas sem moral nenhuma (1903)

0 comentários:


gaveta de arrumos