Amores maduros


Campo de Flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno
o sagrado terror converto em jubilação.
Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.
Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.
Carlos Drummond de Andrade, in Claro Enigma (1951)

(Des)mascarar III

We wear the mask that grins and lies.
It shades our cheeks and hides our eyes.
This debt we pay to human guile
With torn and bleeding hearts...
We smile and mouth the myriad subtleties.
Why should the world think otherwise
In counting all our tears and sighs.
Nay let them only see us while
We wear the mask.

We smile but oh my God
Our tears to thee from tortured souls arise
And we sing Oh Baby doll, now we sing...
The clay is vile beneath our feet
And long the mile
But let the world think otherwise.
We wear the mask.

When I think about myself
I almost laugh myself to death.
My life has been one great big joke!
A dance that's walked a song that's spoke.
I laugh so hard HA! HA! I almos' choke
When I think about myself.

Seventy years in these folks' world
The child I works for calls me girl
I say "HA! HA! HA! Yes ma'am!"
For workin's sake
I'm too proud to bend and
Too poor to break
So... I laugh! Until my stomach ache
When I think about myself.
My folks can make me split my side
I laugh so hard, HA! HA! HA! I nearly died
The tales they tell sound just like lying
They grow the fruit but eat the rind.
Hmm huh! I laugh uhuh huh huh...
Until I start to cry when I think about myself
And my folks and the children.

My fathers sit on benches,
Their flesh count every plank,
The slats leave dents of darkness
Deep in their withered flank.
And they gnarled like broken candles,
All waxed and burned profound.
They say, but sugar, it was our submission
that made your world go round.

There in those pleated faces
I see the auction block
The chains and slavery's coffles
The whip and lash and stock.
My fathers speak in voices
That shred my fact and sound
They say, but sugar, it was our submission
that made your world go round.

They laugh to conceal their crying,
They shuffle through their dreams
They stepped 'n fetched a country
And wrote the blues in screams.
I understand their meaning,
It could and did derive
From living on the edge of death
They kept my race alive
By wearing the mask! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!


Poema falado de Maya Angelou, adaptado de We Wear the Mask, de Paul Laurence Dunbar (1896)

As noites e o jardim


Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia (1944)

(Des)mascarar II

We wear the Mask

We wear the mask that grins and lies
It hides our cheeks and shades your eyes, --
This debt we pay to human guile;
With torn and bleeding heart we smile,
And mouth with myriad subtleties.

Why should the world be over-wise,
In counting all our tears and sighs?
Nay, let them only see us, while
        We wear the mask.

We smile, but O great Christ, our cries
To thee from tortured soul arise.
We sing, but oh the clay is vile
Beneath our feet, and long the mile;
But let the world dream otherwise,
        We wear the mask!


Paul Laurence Dunbar, in We wear the Mask (1896)

Ócios de estio


Estender-me perpendicularmente sob a oblíqua luz do sol da meia tarde e banhar-me no caldo primordial de uma preia-mar. Perfeito exercício de estio. Absolvidos ócios de um estilo que se quer sempre cada vez mais mediterrâneo, cada vez mais insular. 

Os estios pedem. Reclamam-se. Roubam-nos as forças. Ficam mais fortes com elas. Apolo e Dionísio em tensão fraternal máxima. Se o caos tem racionalidade, é a razão própria que valida a tragédia.

Himorogi III

Sempre gostei de estar sob as padieiras das portas. Nem dentro, nem fora. Entre dois mundos. Dentro daquele retângulo de ouro, daquela forma geométrica perfeita. Portas e camas são lugares sagrados. As suas formas assemelham-se. São espaços de entradas e saídas. Onde a morte e a vida se encontram. Onde vidas são concebidas e extinguidas. É na intersecção da verticalidade da porta e da horizontalidade do leito que reside o cerne deste mistério. Onde contínuas hierofanias ocorrem e a questão ontológica da nossa existência ganha contornos físicos externos a cada ente humano. Façamos vigílias, então.

Himorogi II


«Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente diferentes dos outros: a paisagem natal ou os sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude. Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não religioso, uma qualidade excecional, "única": são os "lugares sagrados" do seu universo privado, como se neles um ser não religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa na sua existência quotidiana.»

Mircea Eliade, in Das Heilige und das Profane: Vom Wesen des Religiösen (1957)


gaveta de arrumos